Nesta edição, eu e Luiza, mais uma vez, invertemos os papeis: ela assina a crônica e a indicação musical e eu fiquei com a resenha literária. Boa leitura!
Pode um MC cantar?
Por Luiza Fernandes
Tem um texto famoso nos estudos pós-coloniais que leva o título: Pode o subalterno falar? A autora, Gayatri Spivak, de maneira extremamente elaborada e complexa, argumenta que o subalterno não pode falar, porque a linguagem por si própria já é um meio opressor como forma de expressão. Então, mesmo que o subalterno fale, ele não será compreendido, porque a linguagem não permite que ele se expresse livremente. A discussão da Spivak navega pela psicanálise, o que pode parecer complexo, mas o caso do Poze serve perfeitamente para ilustrar o conceito. O Poze não pode falar, porque a posição que ele ocupa como sujeito é estigmatizada, descredibilizada e, principalmente, criminalizada. Então, sua fala não é compreendida, e pior, é mal interpretada. E por aqui não vemos nada de novo. Ontem foi o samba, hoje é o funk. Essa mitologia de apologia às drogas e ao crime direcionada para o funk me irrita profundamente quando penso nas músicas do agronejo, que fazem referência à cultura do estrupo, excesso de bebida alcoólica e jogo de apostas e seguem ilesas ao enquadramento e criminalização. O limite entre a arte e a apologia é definido pela cor de quem enuncia. Branco faz arte, preto apologia.
Poze foi algemado em casa e levado para delegacia sem camisa e sem chinelo. Depois de cinco dias preso, foi solto por falta de provas. A jornalista Cecília Oliveira, em reportagem publicada ontem no Intercept explica: “não havia armas, não havia drogas, não havia flagrante, não havia motivo”. A prisão fez parte desse grande espetáculo midiático que é a cobertura de segurança pública no Rio de Janeiro. Na matéria do Intercept, Cecília descreve a operação, que enquadra Vivi Noronha, parceira do Poze, com suspeita de envolvimento com Comando Vermelho, Al Qaeda e lavagem de dinheiro. A reportagem desvenda que nos bastidores, os Estados Unidos estão pressionando o Brasil para rotular facções como organizações terroristas. A palavra terrorista me faz lembrar de outro texto famoso, Necropolítica, escrito por Achille Mbembe. O filósofo desenvolve o conceito de necropolítica para explicar políticas de morte que são desenvolvidas pelo Estado como uma estratégia de controle, manutenção da soberania e continuação do genocídio que tem origens coloniais. Voltando para o caso do Poze, chamar MC ou traficante de terrorista é como uma carta branca para o Estado matar. Nessa dinâmica de rotular ações criminosas como atos terroristas, o Estado fica institucionalmente autorizado a aplicar estratégias de guerra e assim, as mortes (e encarceramento) se tornam justificáveis. Como se essa guerra já não estivesse declarada.
Leitura da quinzena
Habitar a contradição
Tem livros que nos encontram. Acredito que em momentos nos quais não sabemos como seguir em frente, essas autoras e histórias se apresentam para oferecer uma saída, uma luz no fim do túnel. Um mundo ch’ixi é possível, da Silvia Rivera Cusicanqui foi uma dessas. Conheci o livro como leitura obrigatória de uma disciplina do doutorado e, se no início me senti perdida frente a tantas palavras novas, depois de algumas páginas fui abraçada pelas ideias de Cusicanqui.
A autora é uma socióloga, historiadora, militante e ativista boliviana que, dentre diversas frentes atuantes, trabalha com e por uma forma de conhecimento índia.
“Uma liderança feminina aimará das rebeliões do início do século passado disse: “Se nos oprimiram como índios, como índios nos libertaremos”.”
Apesar do livro falar especificamente do contexto boliviano, o chamado ch’ixi (que se pronuncia tchêrre) é uma provocação sobre como conviver com as contradições de povos latino-americanos que foram colonizados e têm até hoje suas populações não-brancas tidas como inferiores. É sobre superar a tentativa de apaziguar nossa dicotomia entre modernidade e tradição, e habitar o desconforto de estarmos sempre neste entre. Ao invés de cedermos às tentativas coloniais (que são internas e também internalizadas) de branqueamento, Cusicanqui oferece o conceito-metáfora ch’ixi — pedra que de longe se vê cinza, mas é feito de duas cores entrepostas simultaneamente — como a potência da nossa mestizaje explosiva, que resistiu e resiste às violências.
Cusicanqui nos convoca fugirmos das palavras mágicas que tudo explicam e nos aprisionam, buscando uma política do corpo, no qual imprimimos nosso pensamento ativista em tudo o que fazemos. É um convite para observarmos e fazermos micropolítica, resistência do cotidiano, valorizando o compartilhamento ao invés da competição. A partir da episteme índia, a autora convoca um saber que não se restringe aos humanos, mas se estende a todos os outros seres, incluindo os mortos.
A verdade é que eu posso buscar todas as palavras do dicionário português, espanhol ou aimará para explicar aquilo que senti ao ler o livro e nenhuma delas seria o suficiente porque o que Cusicanqui evoca é uma vontade de ação. Onde as palavras faltam devemos preencher com gestos e trabalho. O chamado descolonizador da boliviana é um divisor de águas; depois de mergulhar nas provocações do mundo ch’ixi, você nunca mais será a mesma. Eu sei que não sou.
Pedagogia da Putaria
Por Luiza Fernandes
Gambiarra Chic, Pt. 2 é o terceiro álbum de Vita Pereira e Isma Almeida, que mais uma vez nos dão uma aula sobre putaria. Com parcerias incríveis como Ebony, Ventura Profana, Duquesa Larinhx, CyberKills entre muites outres, as Irmãs de Pau novamente assinam um álbum cheio de hits. Combinando funk, techno, rap e putaria, as músicas são um convite para balançar as corpas, beber, fumar e amar.
As letras, como de praxe, são inteligentes, sagazes e divertidas, compondo uma verdadeira aula sobre a estética da putaria e a vivência das bonecas. As faixas transitam entre português, inglês e espanhol, demonstrando abrangência e intelecto de Vita e Isma. Faço menção honrosa para BAILE NO RXOTA e QUEENS OF CUNTY, que não saem do meu replay. Taca stream nas afrobonecas!